A Realidade Através do Espelho.

sábado, 29 de agosto de 2009

Brigitte

O crepúsculo já se instalara. Ressoava pelas paredes úmidas da casa. A disposição das velas acesas pelo cômodo dava ao ambiente um ar de morbidez e tensão. Eu estava ao piano. Nua. Debruçada sobre a partitura de Moonlight Sonata até que o rangir da porta me anunciou a entrada de alguém. E naquela expectativa de breves segundos, desejei a solidão. Vi apenas um vulto másculo que vagava perdido à minha procura. Como um viciado que nunca se contenta com a última dose. Eu estava diante do meu tênue invólucro. Senti seus dedos frios pousando no meio seio. Sorri pevertidamente. Entre nós havia um estranho vínculo, um magnífico cordão umbilical. Sentia-me atraída por ele, contudo desconhecia as razões para a desconcertante sensação. Talvez estas sequer existissem de fato. Ele criara um desejo cego por mim, um admirável fanatismo. E eu vivia no limite do prazer que esta idolatria gerava e da desconfortabilidade com aquela lealdade desnecessária. A verdade: sempre carreguei uma espécie de aversão à segurança nos relacionamentos. Saboreava com deleite cada gota de inconstância que me compunha. Meus olhos sobrevoaram-lhe o corpo, reportei-me aos olhos. Eles eram uma espécie de armadilha envolvente. Sempre lúgubres e desesperados, tinham sede de amor. Amor? Nunca o conheci. Beijei-lhe o pescoço e a mancha carmim que o estampara seria o único retrato de mim que ele carregaria adiante. Vesti-me minuciosamente. Portava um sobretudo ocre, com botões perfeitamente dispostos. Calcei as sapatilhas vermelhas; numa composição clássica, elas brilhavam admiravelmente. Eis que acendi o meu cigarro, dirigi-me à porta e fi-la ranger assustadoramente. Afinal, eu não mais escutaria aquele grunhido. Aquele barulho, outrora detestável, talvez me fizesse falta em futuro longínquo. Fui-me para a vida. Pois que em tanto tempo aquele homem não me conhecia. Não que eu não tivesse o hábito de me mostrar, todavia, diante de todas as minhas máscaras, nem eu sabia de mim mesma.

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